'Piracicaba exige iniciativas além do provinciano Desenrola’

O ex-prefeito José Machado istrou Piracicaba em duas oportunidades – na primeira vez, entre os anos de 1989 e 1992, e depois entre 2001 e 2004. Com a experiência adquirida, ele vê com preocupação os rumos da cidade para os próximos anos. Machado vê com ressalvas o início da istração do prefeito Helinho Zanatta.
“Uma cidade do porte e da relevância de Piracicaba, desafiada pela crise urbana e climático-ambiental e pelas abissais desigualdades sociais, exige iniciativas que vão além do trivial e provinciano ‘Desenrola’”, criticou.
O ex-prefeito se diz também radicalmente contra o projeto Boulevard Boyes, “que pretende construir quatro torres residenciais de quase cem metros de altura internamente ao imóvel da histórica fábrica de tecidos, afrontando a paisagem e o significado histórico-cultural e ambiental da orla do rio Piracicaba, numa flagrante ilegalidade”.
Ele ainda falou sobre concessão do parque do Mirante, comentou sobre a grande mortandade de peixes foi verificada no Rio Piracicaba, ocorrida há cerca de um ano, e espera que a cidade volte a ter representantes na Câmara dos Deputados nas próximas eleições.
Sobre o governo federal, Machado entende que vai bem, com a economia crescendo e, segundo ele, com a inflação controlada, fazendo com que o custo de vida tende a cair.
Machado foi também deputado federal em duas oportunidades (1995-1999) e entre 1999 e 2000, quando se afastou para assumir a prefeitura de Piracicaba. Veja abaixo a entrevista completa.
Usando um olhar de prefeito: como o senhor vê Piracicaba hoje? Quais os desafios que a cidade enfrenta e que precisam ser superados? A Oscip Pira21, reconhecidamente apartidária, acabou de publicar um relatório identificando graves situações de má performance de nossa cidade em vários quesitos importantes, dentre eles, a persistência das desigualdades sociais, especialmente, da extrema pobreza (7,93% da população total do município); da violência em geral e, particularmente, da violência no trânsito (Piracicaba ocupa o segundo lugar no ranking estadual); o aumento dos moradores de rua e do trabalho infantil informal; o elevado índice de perdas no processo de distribuição de água (53,93 %), muito acima da média nacional (35,4%). A meu ver, Piracicaba está numa encruzilhada, tendo a cidadania que decidir qual modelo de cidade e de performance social deseja para as atuais e futuras gerações. A extinção do Instituto de Planejamento e Pesquisa e da Empresa Municipal de Desenvolvimento Habitacional, a perda de credibilidade de órgãos como o Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Cultural, o abandono do Projeto Beira-Rio, entre outros fatos, significara o abandono do caráter permanente e sistemático do planejamento urbano e social, expondo nossa cidade aos ditames da especulação imobiliária e, consequentemente, aos riscos associados. A cidadania, ainda que presente nos conselhos e nas conferências municipais, não tem a sua representatividade convenientemente respeitada pelo poder público, rebaixando a democracia participativa. Já a da hora de mudar isso.
Que tipo de cidade Luciano Almeida “deixou” para Hélio Zanatta? Sou muito reservado na crítica a prefeitos de Piracicaba, em razão de ter sido um deles e saber que o exercício do cargo é sempre muito espinhoso. Com todo o respeito ao Luciano Almeida, ele foi eleito e governou sem um plano razoavelmente definido, fato que o levou a improvisar ao longo do mandato e o impediu de concluir projetos, deixar marcas e tomar iniciativas estruturantes, que permitissem ao seu sucessor dar continuidade. Não me atrevo a fazer ressalvas sobre sua capacidade istrativa e nem sobre sua dedicação no exercício do cargo, mas, a meu ver, abdicou de exercer a liderança necessária, sem a qual a cidade ficou à deriva, sem rumo.
Qual sua avaliação desses menos de 6 meses de novo governo? Talvez seja um pouco cedo para uma avaliação conclusiva, mas me incomoda, de um lado, o viés gerencial do governo marcado pelo slogan “Desenrola”, e de outro, a aparente visão de que o progresso de uma cidade se restringe ao bom desempenho do mercado de negócios. Lógico que a eficiência istrativa é importante, assim como o desenvolvimento do mundo dos negócios, mas uma cidade do porte e da relevância de Piracicaba, desafiada pela crise urbana e climático-ambiental e pelas abissais desigualdades sociais, exige iniciativas que vão além do trivial e provinciano “Desenrola”. Assusta e decepciona, diante de um poder legislativo subserviente, a maneira apressada e desrespeitosa do poder executivo de fazer aprovar projetos de elevado interesse público, como se viu, por exemplo, no caso da taxa de iluminação pública. Qual a relevância hoje que têm os conselhos e as conferências municipais? A qual papel foi relegada a participação cidadã nos destinos da cidade? Não é o meu desejo, mas avalio que o prefeito Hélio Zanatta corre o risco de repetir a performance tímida de Luciano Almeida, agravando a encruzilhada de nossa cidade a que me referi anteriormente.
Polêmica da Boyes: o senhor concorda com o empreendimento no local? Já tive a oportunidade de me pronunciar radicalmente contra o projeto Boulevard Boyes, que pretende construir quatro torres residenciais de quase cem metros de altura internamente ao imóvel da histórica fábrica de tecidos, afrontando a paisagem e o significado histórico-cultural e ambiental da orla do rio Piracicaba, numa flagrante ilegalidade. Torço para que a polarização sobre o projeto seja superada e que o bom senso e o elevado espírito público triunfem e suscitem a necessidade da abertura para o diálogo democrático respeitoso. A meu ver, é necessário e possível se pensar na concretização de um projeto alternativo que seja compatível com a preservação do exuberante significado paisagístico, histórico-cultural e ambiental da orla ribeirinha, que não seja socialmente elitizado e, na ótica privada, que seja financeiramente sustentável.
Concessão do parque do Mirante: projeto foi aprovado com pouca discussão na câmara. Pergunto: o senhor concorda em ar a istração de locais públicos à iniciativa privada? Qual impacto da medida? Primeiramente é lamentável constatar-se que a Câmara, pra variar, aprovou esse projeto a toque de caixa, à revelia do necessário amplo e aprofundado debate democrático. Não alimentei como prefeito a pretensão privatista, mas não tenho preconceito quanto a ar a istração de locais públicos para a iniciativa privada. Em certas situações de precariedade ou dificuldade istrativa do poder público, esse modelo pode ser adotado. A questão é saber se o modelo aprovado atenderá às expectativas do interesse público quanto a qualidade do serviço prestado e, por outro lado, se não tornará o parque um local elitizado, que vede o o democrático por parte das camadas sociais de menor renda. Um debate prévio mais amplo poderia ter esclarecido essas questões. De todo modo, a experiência concreta trará esse esclarecimento e, caso se verifique a má qualidade dos serviços e o viés elitista, espera-se que a cidadania ativa exija a anulação da concessão.
Ano que vem teremos eleições novamente. Atualmente, Piracicaba não tem nenhum deputado federal, apesar de contar com mais de 300 mil eleitores. Como o senhor vê a importância de a cidade eleger um representante local para a Câmara Federal? O colégio eleitoral de Piracicaba tem todas as condições de eleger um ou mais representantes locais para a Câmara Federal. Isso já foi possível no ado e é importante que isso aconteça novamente. O que se requer, contudo, é que se apresentem para a disputa lideranças reconhecidas, capazes de exercer um mandato com a pluralidade e a dignidade à altura de nossa cidade e de nosso país. Não queremos meros despachantes de luxo.
Há um ano, entre os dias 7 e 15 de julho, grande mortandade de peixes foi verificada no Rio Piracicaba. A causa foi identificada e uma empresa foi multada e teve as atividades suspensas. Na sua opinião, quais medidas precisariam ser adotadas para que o rio Piracicaba não tivesse novamente episódios como esse? A Bacia do Rio Piracicaba conta com instituições de prestígio como o Consórcio Intermunicipal, o Comitê de Bacia e sua respectiva Agência, a Diretoria Regional da SP Águas e a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo, com os respectivos instrumentos de gestão, e fica difícil explicar como acidentes dessa monta, cuja incidência parecia superada, ainda acontecem. Algo está errado e, a meu ver, o modelo de gestão ainda é falho, carente de uma competente política de riscos, capaz de hierarquizar convenientemente os agentes poluidores e fiscalizá-los preventiva e sistematicamente conforme o grau de risco associado a cada um. Na minha modesta opinião, a empresa que acarretou o acidente, portadora de carga poluidora de alto risco, não foi fiscalizada, repito, preventiva e sistematicamente pelos órgãos competentes.
Governo Lula 3: a economia ainda é um desafio… avalie o governo... A economia brasileira vem exibindo taxas de crescimento que se situam entre as maiores do mundo, a elevação do emprego formal tem batido recordes, a inflação está controlada e o custo de vida tende a cair. Contudo, a economia ainda não voa em céu de brigadeiro e tem problemas estruturais arraigados, a exigir reformas profundas. Menciono, para exemplificar, a necessidade de melhorar significativamente a distribuição de renda e a de impulsionar a industrialização moderna, ambientalmente sustentável e de alto padrão tecnológico, sem a qual não galgaremos a rota do desenvolvimento sustentado e de baixo carbono no longo prazo. A Nova Indústria Brasil representa uma política industrial robusta e está sendo implementada. Mas como faremos essa política deslanchar se não superarmos o gargalo dos juros elevadíssimos praticados pelo Banco Central? A reforma do sistema financeiro se impõe, mas isso contraria os interesses do capital financeiro, entrincheirados na Avenida Faria Lima. Portanto, o problema nacional é eminentemente político. Nesse terreno, as dificuldades do governo Lula são abissais, pois enfrenta uma situação de governabilidade bem mais difícil do que já enfrentou nos mandatos anteriores. Se no ado prevalecia o nefasto presidencialismo de coalizão, agora prevalece o nefastíssimo semipresidencialismo, uma deformação nascida sob a égide do governo Bolsonaro e que agora se arraigou. A chantagem do chamado Centrão, no Congresso Nacional, ávido de poder, se manifesta o tempo todo, impedindo ou dificultando o governo Lula de fazer as reformas necessárias. Em meio a tudo isso, o Brasil ainda tem que se deparar com a permanente ameaça do retorno do fascismo, que destruiu as políticas públicas e sobrecarrega o atual governo para reconstrui-las, além de tentar conduzir nosso país, sem êxito, felizmente, na senda do autoritarismo. Desafios enormes!